Prévia: Assassinato na Colina D
- Litera
- 14 de jul. de 2020
- 11 min de leitura
Atualizado: 25 de nov. de 2020

Parte 1: Os Fatos Era uma tarde quente e úmida no meio de setembro. Eu estava bebendo café gelado em minha cafeteria predileta, Hakubaken, no centro da avenida principal da Colina D. Nesta época, eu havia acabado de largar os estudos e ainda não tinha uma ocupação, então, ia a uma pensão e lia alguns livros, ou, se estivesse muito cansado disso, caminhava um pouco e ia a uma cafeteria que não fosse muito cara. Hakubaken ficava próxima à pensão, então, sempre passava em frente ao local quando fazia uma caminhada, implicando que fosse a que eu mais frequentasse. Geralmente ficava por um tempo e bebericava uma ou duas xícaras de café, primeiramente por ser uma pessoa de pouco apetite, porém, também não possuía dinheiro o bastante para pagar por uma refeição. Permanecia no local por algumas horas, embora não fosse muito amigo de nenhuma das garçonetes. A cafeteria apenas fornecia um ambiente mais agradável e iluminado para sentar-me que minhas estalagens. Aquela tarde úmida fora como outra qualquer. Eu estava sentado em meu habitual assento de frente para a rua, bebericando meu café gelado por cerca de dez minutos enquanto languidamente espiava pela janela.
Recentemente, a Colina D se tornou uma cidade grande e agitada, mas, durante sua expansão, muitas das lojas que antes existiam no local, agora haviam sido fechadas ou relocadas para outra parte da cidade, deixando lotes vagos em ambos os lados da rua, tornando-a um pouco deserta. Diretamente do outro lado da rua, em frente ao Hakubaken, havia uma gasta livraria de segunda mão, que era objeto de certos olhares vagos nos últimos dez minutos. Em circunstâncias usuais, eu não voltaria novamente meu olhar a ela, porém, recentemente, havia descoberto que a esposa do dono da livraria era uma amiga de infância de Akechi Kogoro, um recém-conhecido que deixou certa impressão em mim. Ele havia uma personalidade e tanto, com um feroz intelecto e uma paixão por romances policiais. Pelo que me lembro das duas ou três vezes que fui àquela livraria, a esposa do dono era uma bela dama e, embora seja difícil indicar o que exatamente a tornava tão atraente, ainda possuía um charme sensual que atraía os homens a ela. Ela sempre cuidava da livraria durante o início da tarde, o que significa que ela ainda deve estar por lá, e eu observava se ela sairia até a frente da loja.
Mas, durante estes dez minutos ela não havia deixado a loja por onde eu pudesse vê-la, nem mesmo algum cliente entrou ou saiu, então eu desisti e redirecionei meu olhar à relojoaria ao lado. Repentinamente, na livraria, eu vi o buraco da porta que conectava os fundos da loja à parte dianteira bater com força por dentro. Você deve estar se perguntando que tipo de porta teria um buraco no meio; bem, era o tipo de porta que um carpinteiro chamaria de portas de “ripas duplas”, onde a grande parte central da porta que normalmente tem papel colado através dela é substituída por uma grade de dupla camada com estrutura de madeira. Cada estrutura tem aproximadamente 5 centímetros de largura, e as duas camadas da grande podem ser feitas tanto para alinhar, permitindo que o dono da loja vigiasse a loja através dos vãos na grade, ou feitas para se sobrepor, criando uma tela de madeira pela qual não é possível se ver através. Como acabara de ser fechada, seja lá quem estivesse no escritório dos fundos não seria capaz de checar a loja pela porta, o que era muito estranho. Além de ser um convite a larápios, também evitaria que ar fluísse pela loja, tornando o escritório dos fundos desconfortavelmente abafado. Quanto mais pensava sobre isso, mas incomum parecia, e notei-me incapaz de desviar o olhar da livraria. Sentia que algo fora do comum acontecia por lá.
Pensando na mulher na loja, lembrei-me de certos rumores que circulavam sobre ela entre as garçonetes do Hakubaken. Elas dizem que, quando encontraram-se acidentalmente com ela na casa de banho, todas notaram que seu corpo estava coberto de contusões, como se ela houvesse sido golpeada diversas vezes, embora aparentemente não houvesse discussões entre ela e o marido, o que o tornava quase impossível de ser considerado responsável. Outra das garçonetes viu que a esposa do dono da loja de rámen, a duas portas da livraria, também estava repleta do mesmo tipo de ferimentos. Presumi que, se os boatos forem verdadeiros, apenas mostravam a crueldade de seus maridos, e não ponderei mais sobre isso. Infelizmente, leitores, eu estava muito errado sobre isso; como notarão, estas marcas eram a chave para tudo o que se seguira.
Desta forma, observei a loja por meia hora. Senti até em meus ossos que algo de errado estava acontecendo naquela rua, e que perderia algo se desviasse o olhar mesmo que por um momento. Então, por acaso, Akechi Kogoro, que eu brevemente mencionei anteriormente, passa pela janela. Ele vestia seu costumeiro kimono de verão, com largas faixas verticais, e caminhava em seu jeito estranho, com ambos os ombros tremendo como se estivesse tossindo violentamente. Quando me notou, curvou-se levemente e entrou na loja, pediu café gelado e sentou-se ao meu lado. Assim que percebeu que eu encarava algo atentamente, ele seguiu meu olhar até a livraria e também fixou seu olhar nela. Ele parecia não necessitar de uma explicação, e simplesmente me acompanhou a olhar para o outro lado da rua.
Enquanto observávamos, mantivemos certo tipo de conversa, e embora não consiga me lembrar de tudo sobre o que falamos, certamente tinha ligação com os tópicos prediletos de Akechi, crime e trabalho de detetives.
— Acha que é possível cometer o crime perfeito? Um do qual você certamente conseguirá se safar? Acho que provavelmente é possível. Pegue como exemplo o caso em “Jornada”, do Jun'ichirou Tanizaki. Aquele tipo de crime nunca é detectado. Sim, no romance, o detetive descobriu, mas é por causa da grande imaginação do autor — disse Akechi.
— Bem, eu não penso desta forma — respondo-lhe. — Acredito que, teoricamente, não há crime que um detetive não possa solucionar. Se um criminoso conseguiu elaborá-lo, também é possível um detetive desvendá-lo.
Discutimos um pouco mais sobre isso, mas logo nos calamos, de alguma forma envolvidos pela livraria do outro lado da rua.
— Você também notou, não é? — pergunto-lhe, e recebo a resposta após um suspiro.
— As pessoas furtando livros das prateleiras na frente da loja? — respondeu Akechi imediatamente. — Notei assim que entrei aqui. É a quarta pessoa a furtar um desde que cheguei. É estranho, não acha?
— É a quarta pessoa desde que você chegou, há trinta minutos. Mas, estou aqui há mais de uma hora, e ninguém surgiu do escritório dos fundos. Está vendo a persiana no meio da porta dos fundos? Há cerca de uma hora, foi fechada por dentro.
— Talvez a pessoa a cuidar da loja tenha saído ou algo assim.
— Não, não pode ser isso. Desde que a persiana foi fechada, ninguém foi ao escritório dos fundos, ninguém saiu, e a persiana não foi aberta uma vez sequer. Suponho que alguém possa ter saído pela porta dos fundos. …Ainda assim, seria estranho deixar a loja abandonada por mais de meia hora. Talvez devêssemos checar se está tudo bem.
— Tem razão, mesmo que não tenha ocorrido nada, deveríamos checar e alertá-los que estão furtando os livros.
Enquanto deixava a cafeteria, estava morbidamente animado pelo pensamento de ir ao que poderia ser a cena de um crime, e via que Akechi sentia uma emoção similar.
A loja era do tipo que se vê com frequência, com prateleiras ao longo das paredes chegando ao teto, indo de um lado a outro, assim como aos fundos da loja, e uma “ilha” retangular com prateleiras no centro da livraria que atingia aproximadamente a altura do peito. Nos fundos à direita, havia um vão com cerca de um metro de largura onde ficava a caixa registradora e, logo atrás, a porta de ripas duplas que levava ao escritório dos fundos, com as persianas ainda firmemente fechadas no painel central. Neste pequeno vão, havia uma cadeira onde o dono ou sua esposa estariam sentados para operar a caixa registradora e observar a loja.
Akechi e eu fomos até a área, e gritamos na direção do escritório dos fundos esperando que alguém viesse, mas não houve resposta. O dono seria tão negligente a ponto de deixar este lugar sem direção? Empurrei a porta de correr que dava no escritório dos fundos para abri-la um pouco, e espiei pela abertura. A luz estava apagada e estava muito escuro no interior, mas era possível ver traços vagos de algo no fim do cômodo.
— Deveríamos entrar para checar — disse Akechi às minhas costas.
Nós nos apertamos no pequeno cômodo, e Akechi encontrou o interruptor de luz ao lado de uma luminária e o pressionou. Neste momento, ambos soltamos um involuntário e rígido grito ao notarmos o corpo esfalecido de uma mulher esparramado no canto do escritório.
— É a esposa do dono — sobressaltou-se Akechi. — Não parece que ela foi estrangulada?
Aproximando-se do corpo, prosseguiu — Temos de ligar para a polícia. Eu vou à cabine telefônica chamá-los aqui. Você continua onde está e mantém vigilância. Não devemos comentar com os vizinhos, ou todos virão e atrapalharão a cena do crime.
Com isso, ele correu ao telefone público, que ficava a menos de um quarteirão de distância.
Li diversos romances policiais desde minha juventude, e estava familiarizado às teorias de crimes, assassinatos e investigações, mas agora deparava-me, de fato, com uma cena de crime, um assassinato sobretudo. Eu não fazia ideia do que fazer, então apenas olhei ao redor do cômodo minuciosamente enquanto aguardava o retorno de Akechi.
Era um cômodo diminuto, com área estimada entre dois metros e meio e três metros e meio, e, ao lado direito, havia um jardim fechado e um toalete externo. Por se tratar do verão, as portas para o jardim estavam bem abertas, permitindo que eu vislumbrasse todo o local. A uma porta aberta ao lado esquerdo havia um pequeno banheiro, e próximo a este a porta dos fundos estava firmemente fechada. Do outro lado da porta do banheiro havia uma escadaria e um armário. Era o estilo pequeno e barato de casa geminada que continuavam populares nesta parte da cidade.
O corpo da mulher estava contra a parede no lado esquerdo do cômodo, com a cabeça voltada para a fachada do edifício. Eu não queria interferir em nada a cena do crime e, principalmente, não possuía o menor interesse em me aproximar de um cadáver, então permaneci à porta por onde entramos. Mas, era um cômodo tão pequeno, que por mais que tentasse evitar olhar para o corpo, de alguma fora ainda aparecia em meu campo de visão. Ela trajava um kimono índigo de verão estampado com crisântemos, e estava caída de costas. Estranhamente, a bainha de seu kimono fora dobrada para cima, expondo suas pernas até as coxas. Não havia sinais de resistência em seu corpo e tampouco ao redor. Ao redor de seu pescoço, havia uma marca roxa onde ela evidentemente fora estrangulada.
O alvoroço nas ruas lá fora. Os sons das pessoas conversando em vozes altas, o barulho dos calçados de madeira denominados geta contra a calçada, uma voz embriagada cantando fora de tom, todos ignorantes de que por trás de uma simples porta de correr jazia o corpo de uma mulher, assassinada a sangue frio. É, de fato, um mundo cruel, pensei enquanto ouvia os sons do exterior.
— A polícia está a caminho — disse Akechi, ofegante por ter corrido desde o telefone público.
— Entendo — respondo, necessitando muito esforço para proferir esta única palavra, e ambos olhamos um para o outro, sem dizer sequer uma palavra a mais.
Em alguns instantes, a polícia chegou. Dois homens entraram, um oficial em uniforme e outro vestindo um terno, que, a julgar por suas posses e atitude em geral, era algum tipo de doutor. Mais tarde, descobri que o homem uniformizado era um inspetor da delegacia de Kagura, e o homem de terno era o médico legista do mesmo departamento. Explanei ao inspetor os eventos desta tarde até aquele ponto. Ele pediu-me que explicasse sobre a persiana fechada com mais detalhes, então recobrei os eventos o mais claramente possível.
— Akechi juntou-se a mim na cafeteria às oito e meia em ponto; recordo ter olhado para o relógio na cafeteria assim que ele entrou. Então, por volta das oito, deve ter sido quando a persiana foi fechada por dentro. Naquele momento, a luz estava acesa. Então, às oito em ponto alguém devia agir por aqui.
Enquanto o inspetor me ouvia e tomava notas, o médico legista examinava o corpo. Quando terminei de falar, ele disse:
— Ela foi estrangulada. O assassino utilizou suas mãos; podemos notar através das marcas ao redor de seu pescoço a forma de dedos deixada onde fora aplicada a pressão. Há também uma pequena quantia de sangue, ocasionada pelas unhas do assassino a lacerar-lhe a pele enquanto a estrangulava. Considerando que há a marca de um polegar no lado esquerdo de seu pescoço, podemos afirmar que o assassino a estrangulou com apenas sua mão, e esta seria a direita. O momento da morte fora há pouco mais de uma hora. Obviamente, não há a menor chance de que ela esteja viva.
— E foi estrangulada por cima, ao que parece — completou o inspetor. — Mas, dado o fato de não haver sinais de resistência, ela deve ter sido atacada repentinamente e com força estupenda.
Então, o inspetor perguntou-nos o paradeiro do dono da livraria. É claro, não tínhamos como saber o que acontecera a ele, mas Akechi sugeriu interrogar o dono da relojoaria, a fim de descobrir se ele imaginava onde o homem poderia estar. A conversa entre o inspetor e o dono da relojoaria foi a seguinte:
— O senhor sabe a que local o dono deste estabelecimento foi?
— Bem, até onde sei, ele gerencia temporariamente uma tenda noturna que vende livros, então é por isso que está longe da loja. Ele retorna à casa apenas depois da meia-noite, se não me falha a memória.
— Onde localiza-se esta tenda?
— Ele geralmente vai ao mercado em Hirokoji, a caminho de Ueno, mas, se ele está ou não lá esta noite, é algo que temo não poder afirmar.
— Há cerca de uma hora, o senhor ouviu algo incomum vindo desta loja?
— Algo incomum?
— Algo mais grosseiro, como a voz desta mulher ao ser morta, o som de uma luta…
— Não, não ouvi nada do gênero.
Enquanto isso, as notícias do assassinato se espalhavam, e uma multidão de transeuntes se reuniu na livraria. A mulher que era dona de uma loja de meias tabi do outro lado da livraria chegou e confirmou as afirmações do relojoeiro, dizendo que também não ouvira nada de incomum durante a tarde.
Em seguida, o som de um carro parando diante da loja pôde ser ouvido, e diversas pessoas lançaram-se para dentro. Estas pessoas faziam parte do gabinete do promotor público e, por coincidência, chegaram ao mesmo tempo que o chefe do batalhão de Kagura, e o renomado detetive Kobayashi. O inspetor que chegara mais cedo deu continuidade e relatou os detalhes do crime para os recém-chegados, e Akechi e eu fomos chamados para contar nossa versão novamente.
— Primeiramente, vamos fechar a porta principal — disse repentinamente o detetive Kobayashi. Ele vestia uma jaqueta de lã preta e calças brancas, aparentava ser um daqueles funcionários de nível hierárquico baixo que tentam demasiadamente parecerem espertos. Ele empurrou os observadores para fora e começou com suas investigações. Enquanto investigava, parecia esquecer a presença de todos no cômodo, como se fossem excluídos de seu campo de visão. Do início ao fim, ele trabalhou sozinho, e parecia que o inspetor, o chefe de polícia e o resto de nós estivéssemos todos lá apenas para observar e admirar as ações e os métodos de Kobayashi. Primeiro, ele foi até o corpo para analisá-lo. Levou certo tempo observando o pescoço da vítima, mas, no fim, declarou aos policiais reunidos:
— As marcas deixadas pelos dedos são perfeitamente normais e não demonstram características peculiares. O assassino era um homem qualquer que estrangulou a vítima com sua mão direita. O corpo não indica outras pistas.
Após isso, Kobayashi disse que queria despir a vítima para buscar mais pistas, e Akechi e eu fomos obrigados a deixar a sala. Aguardamos em frente à loja, e embora não soubesse quais foram as descobertas, ouvi por alto a menção de que o corpo da mulher estava coberto de contusões. Comentei sutilmente para Akechi que os rumores a circular entre as garçonetes do Hakubaken devessem ser verdadeiros.
(...)
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