Os Dez Mandamentos de Knox para a ficção policial
- Litera
- 26 de nov. de 2020
- 8 min de leitura

[Originalmente publicado no Instagram]
Vamos falar um pouquinho sobre mistério? Vocês conhecem Ronald A. Knox?
Padre, teólogo e radialista são outras das funções do renomado autor da Era de Ouro da ficção policial (predominante nas décadas de 1920 e 1930), da qual também destacam-se Agatha Christie, Dorothy L. Sayers, S.S. Van Dine e John Dickson Carr.
Em seu legado, além de suas obras e ensinamentos, Knox deixou também os Dez Mandamentos (ou Regras) da Ficção Policial, os quais conheceremos agora.
Durante aa Era de Ouro, a maior parte das obras de mistério eram focadas no "whodunit", ou seja, em "quem fez". Levando isto em consideração, Knox disse que "uma história de detetives precisa ter como principal interesse o desenvolvimento de um mistério, cujos elementos estão claros desde o princípio e cuja natureza seja provocar curiosidade, a qual será retribuída no final." Assim, para elaborar sua definição, criou seus "mandamentos" da ficção policial.
1° Mandamento de Knox: O Criminoso deve ser mencionado na primeira parte da história, mas não deve ser alguém que chame a atenção do leitor.
Seu primeiro Mandamento é de extrema importância para a coerência de um mistério: o criminoso deve ser mencionado no início da história. Afinal, este tipo de literatura é uma espécie de desafio entre autor e leitor, então, nada mais justo que apresentar seu vilão ou antagonista antes do meio da história.
Já pensou você ler um mistério, formar várias teorias, pra quando chegar no final o culpado ser alguém que não foi nem mencionado antes? Não é muito legal, certo?
O mesmo vale para um vilão muito "chamativo". Muitos preferem que este personagem seja astuto e sábio, e que consiga esconder seus passos, então pôr uma seta neon em cima da cabeça do personagem falando que ele é o culpado pode diminuir um pouco o suspense.
Porém, dependendo do estilo da história e da forma como o enredo será desenvolvido, talvez um adversário explícito, mas que cuja captura é quase impossível, pode ser um excelente diferencial!
Se você encontrar dúvidas na hora de construir seu detetive e seu criminoso, analise: quais são os detetives que mais gosta, e por quê? Os mais peculiares, como Poirot? Os mais cultos, como Holmes? Ou as mais observadoras, como Miss Marple? Talvez, um estilo completamente diferente ou até mesmo uma mistura de todos estes. Os criminosos são mais reservados? Mais audaciosos, mais sábios? Quem sabe, mais estúpidos? Se preferir, comece por um "terreno conhecido", inspirando-se nos traços favoritos dos personagens que mais gosta e, aos poucos, dê características próprias e cada vez mais distintas a seus personagens, desenvolvendo cada vez mais sua personalidade e hábitos.
2° Mandamento de Knox: Todos os fatos sobrenaturais são descartados como uma coisa natural.
No segundo mandamento, Knox nos diz que o sobrenatural deve ser tratado como tal, não como algo comum e rotineiro. Considerando que o mistério é uma espécie de "batalha" entre autor e leitor, ambos têm de estar no mesmo nível e serem capazes de utilizar os mesmos recursos. Ou seja, o leitor não será capaz de utilizar de vias sobrenaturais para solucionar um enigma, apenas seu raciocínio e a lógica. Sendo assim, o autor deve fazer o mesmo e evitar utilizar meios sobrenaturais para a execução de seu enigma. Uma exceção pode ser feita caso o foco da história envolva elementos sobrenaturais explícitos e este seja o seu tema.
3° Mandamento de Knox: Não mais do que um quarto ou passagem secreta é permitida.
O terceiro mandamento de Knox refere-se a algo que muitos autores adoram utilizar em suas obras: passagens secretas. Mas, vamos pensar por outro ângulo: você, como um detetive sedento pela conclusão de um mistério, gostaria de deparar-se com uma infinidade de salas e passagens secretas que seu "adversário", o criminoso, pudesse utilizar para escapar ou para cometer seus crimes? Um mistério assim poderia levar uma eternidade para ser completamente solucionado! Então, para evitar "saturar" o desenvolvimento de seu caso, evite criar mais que uma passagem ou sala secreta.
Ao mesmo tempo que salas secretas podem auxiliar o autor a criar um mistério mais complexo, podem também destruir tudo o que já foi escrito, desperdiçando todo o seu potencial. Abusar da quantidade ou do uso de tais salas pode ficar um pouco cansativo ou redundante, assim como criá-las para fins irrelevantes ou supérfluos pode quebrar um pouco do suspense em torno dela. Caso criar uma passagem como esta, muito cuidado!
4° Mandamento de Knox: Venenos desconhecidos podem ser utilizados, mas são um aparato que não deverá ter uma explicação científica longa no final.
A explicação para o quarto mandamento é mais simples: se não conhecemos o veneno, como podemos dizer, cientificamente, como ele funciona? Por se tratar de uma obra fictícia, elementos que não façam parte do mundo real podem estar presentes na narrativa, porém, devemos tratá-los como tais e não dar uma análise científica muito aprofundada. Deve-se comentar apenas o necessário para a compreensão do caso.
O mesmo vale para os equipamentos e aparatos utilizados na obra. Caso esteja escrevendo algo mais inclinado para a realidade que para a ficção, talvez um equipamento com mil e uma utilidades dê um ar mais "improvável" e fantasioso ao objeto. Ainda assim, há diversas formas de introduzi-lo sem causar estranhamento nos leitores e ainda tornar-se um ponto divertido da leitura. Como, por exemplo, ele ser uma peculiaridade de um dos personagens, servindo como uma espécie de "marca" única a ele.
5° Mandamento de Knox: (Originalmente,) Nenhum chinês deve figurar na história. (Hoje tido como) Nenhum estereótipo deve figurar na história.
O mais controverso (e também o menos compreendido) mandamento de Knox é o quinto. Este diz que nenhum chinês deve estar presente na história. Mas por quê? Bem, este mandamento refere-se, na verdade, a um estereótipo muito presente na literatura da época. Os chineses eram quase sempre descritos como frios, calculistas, ardilosos e traiçoeiros. Então, para melhor compreensão, digamos que este mandamento refere-se a evitar estereótipos em uma história.
Além de ser um pouco chato (e dependendo da forma como for abordado, até ofensivo com os leitores), desmerece sua obra. Para você ter uma ideia, durante a Era de Ouro, muitos livros com personagens chineses como vilões foram criticados e alguns foram um fracasso de vendas por reforçarem este estereótipo dos chineses na literatura. Então, não pense apenas em sua obra e em seus méritos, mas também em seus leitores e como poderão se sentir ao ler certos tipos de conteúdo em suas histórias.
6° Mandamento de Knox: Nenhum acidente ou acaso deve sempre favorecer o detetive e nem ele ter uma intuição inexplicável.
Ao escrever uma obra de mistério, lembre-se: grande parte dos leitores veem este tipo de literatura como um "desafio" e tentam desvendar o mistério antes das páginas finais. Então, seria injusto que o detetive descubra algo por mero acaso, assim como seria injusto que ele tivesse uma dedução, digamos… sobrenatural. O mais justo é que tanto o leitor quanto os personagens tenham as mesmas possibilidades para compreender o caso.
No Sexto Mandamento, Knox nos lembra o "jogo" que era feito entre autor e leitor nas obras de mistério durante a Era de Ouro, aconselhando-nos a sempre dar as mesmas chances para o detetive e para o leitor, para que sua disputa seja válida e justa. Do mesmo modo, dicas e pistas devem ser, direta ou indiretamente, dadas ao longo de narrativa, para que o leitor possa montar por si só o quebra-cabeças que é o enigma da obra.
7° Mandamento de Knox: O próprio detetive não pode cometer o crime.
Já pensou se, ao invés do criminoso ser um dos personagens na "lista de suspeitos" da trama, ele for, na verdade, o próprio detetive? Apesar de servir como uma bela reviravolta caso seja habilmente arquitetada, pode acabar sendo um tanto anticlimático nos demais casos, e pode ser que seu leitor se sinta um tanto "traído" pelo caso tomar tal conclusão caso não houver espaço, motivos e indícios para esta revelação na trama.
Apesar de não ser indicado por Knox, caso pretenda tornar seu detetive no próprio culpado, não se esqueça: uma boa reviravolta ainda precisa de indícios. Principalmente no mistério. Então, não é porque você planeja um final inesperado que ele precisa ser abrupto. Desenvolva sua história e seus personagens de forma que a revelação final cause ainda mais impacto em seus leitores.
Por outro lado, não tente afastar demais as suspeitas de seu detetive: isso fará com que os leitores deduzam que ele realmente esconde algo. A menos que esta seja a intenção, deixe o mistério fluir normalmente.
8° Mandamento de Knox: O detetive deve seguir pistas que não serão entendidas pelo leitor.
Considerando que o mistério seja uma espécie de desafio entre autor e leitor, o mais justo é que ambos tenham a mesma possibilidade de "vitória". Para isso, é necessário que as dicas e pistas deixadas ao longo de narrativa possam também ser compreendidas pelos leitores, mesmo que sutis, para que eles sejam capazes "unir as peças" e montar o enigma ao lado do detetive.
Está em dúvidas se suas pistas estão concretas e convincentes? Ponha-se no lugar de seus leitores, ou até mesmo de seu detetive! Caso você encontrasse tais pistas, seria capaz de unir uma à outra e desvendar desvendar todos os enigmas a partir delas? Se a resposta for não, o que fez com que você não conseguisse desvendar os mistérios? É nisto que você deve focar até que consiga encontrar as respostes por si mesmo.
9° Mandamento de Knox: O amigo estúpido do detetive, o típico Watson, não deve esconder todos os pensamentos que passam por sua mente. Sua inteligência deve ser um pouco, mas muito pouco, abaixo da do leitor médio.
Em muitos romances de ficção policial o detetive possui um amigo ou ajudante para auxiliá-lo em algumas tarefas, como Watson para Holmes.
Estes personagens precisam ter um intelecto mediano, para que possa ajudar também ao leitor. Um ajudante de baixo intelecto pouco poderia ajudar nos casos, assim como um ajudante muito sábio poderia dificultar ainda mais a compreensão do caso.
Incluir um amigo ou ajudante para seu detetive pode ser uma boa forma de trabalhar em diferentes aspectos de sua obra sem causar repetições. O diálogo de tais personagens pode acrescentar muito às pistas e, claro, para o entretenimento. Porém, não sinta-se forçado a criar um ajudante apenas por isso. Crie-o apenas se considerar uma boa adição à história, caso contrário, pode se tornar um personagem raso ou de pouca importância para o desenvolvimento da obra.
10° Mandamento de Knox: Não utilizar o recurso dos gêmeos ou do sósia, a menos que a história permita a presença deles.
Por último, o décimo mandamento de Knox. Este é extremamente importante para uma conclusão justa e coerente: não faça o culpado ser um gêmeo, clone, sósia ou algo do género, a menos que já tenham sido mencionados (como dito no primeiro mandamento) e que a história permita sua existência (em uma realidade em que não há clones humanos, um clone não poderia ser o culpado, por exemplo). Caso contrário, a conclusão fará pouco sentido e parecerá planejada de última hora.
Evite adicionar personagens como gêmeos e sósias na reta final de sua história, especialmente para o papel do vilão. Personagens assim são de extrema importância para o rumo da história, mesmo quando não são protagonistas, antagonistas ou vilões. Em um romance de mistério, todos podem ser eventuais suspeitos, e esconder esta informação do leitor pode fazer com que ele se sinta traído. Claro, é possível fazer desta informação um mistério e, nesse caso, deve ser desenvolvido de forma que não contradiga o mistério principal.
Com isso, concluímos a postagem sobre os Dez Mandamentos de Knox. Espero que possam auxiliar os autores presentes. 😉
Compre os livros de mistério de Ronald A. Knox (em inglês), em:
The Viaduct Murder (1925)
The Footsteps at the Lock (1928)
The Body in the Silo (1933)
Still Dead (1934)
Double Cross Purposes (1937)
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